sábado, 31 de janeiro de 2009

As Rugas resguardatárias da minha mãe


Não tenho nem um pingo de vergonha de contar, aliás, sinto até certo prazer. Masoquismo? Sei lá! De mais a mais, se eu mesmo não contar, ninguém vai contar. Nem mesmo a mim, me contaram, mas eu sei de tudo. Como eu sei? Não sei. São aquelas coisas que a gente sabe que sabe, mas não sabe como sabe; Seja lá o que for, isso não vem ao caso, vamos ao que interessa. Vou contar porque a minha mãe tem tantas rugas.
Tudo começou numa daquelas vezes, em que a cegonha foi visitá-la; para ser mais exato, foram onze vezes. Ela teve dez filhos, de cuja série, eu sou o primogênito. Por que onze vezes, se ela só teve dez filhos? Ah! É ai que esta toda a razão desse causo. Aconteceu que por ocasião do meu nascimento, a cegonha foi a minha casa duas vezes. Quando essa incansável criatura avoante levou o primeiro pacote de filhos a minha mãe, a pobre mulher levou um grande susto e franziu a testa formando rugas profundas:
- Valei-me Deus! Que presepada é esta?
Era eu. Eu em membros, tronco e cabeça, mais cabeça que tronco e membros. Eu era feio demais da conta; cabeçudo; orelhudo; parecia mais, um cruzamento de soim desnutrido com caburé orelhudo. O susto foi tão impactante que, a minha mãe teve o resguardo quebrado e em conseqüência, as suas rugas se tornaram irreversíveis, para não dizer, eternas. A cegonha mais que depressa, botou o rabo entre as pernas e partiu calada; partiu, mas ao sentir-se leve, planando nas nuvens, a consciência pesou e ela retornou. Bateu na janela do quarto da minha mãe, que cedendo aos instintos maternos, acomodava o bico do peito na minha boca ansiosa.
- Psiu! Dona Nina? Sou eu! A cegonha...
- Valei-me Deus! O parto ainda não acabou? Vou ter gêmeos? Já não bastava um bebê tão feio, ainda tem mais um pra nascer? Parteira? – gritou minha mãe com visível expressão de desapontamento – o parto ainda não terminou!
O bico do peito escapou abruptamente da minha boca, espirrando leite nos meus olhos.
- Calma Dona Nina! – tentava explicar a cegonha - Não é nada disso...
- Ah! Entendi! Você percebeu o engano... Descobriu que me trouxe o bebê errado?
Mais que depressa, minha mãe atirou-me para os braços da cegonha, esquecendo que aqueles braços também eram pernas. A infeliz, da mensageira de bebês, tentou prensar-me contra o batente da janela, com uma das pernas, enquanto se sustinha na outra, mas a minha pesada bola óssea, protetora do meu volumoso encéfalo, ameaçava malograr o arranjo da equilibrista. A carcaça esquelética começou a pender pro lado do cabeção.
A situação atingiu aquele ponto máximo da acuidade, exigindo uma ação rápida e eficaz. A cegonha vislumbrou a única alternativa possível, ou seja, cravou o seu potente bico na minha orelha direita, na tentativa de manter o equilíbrio da massa cadavérica, aliás, até hoje minha orelha permanece esticada.
A parteira entrou no quarto e correu para a janela em socorro da cegonha. A primeira coisa que a mão dela alcançou, apertou e puxou. Tudo eu havia suportado com muita resignação, mas aquilo já era demais; soltei os cachorros e berrei. A cegonha, percebendo a causa do meu protesto, sussurrou sem soltar a orelha do bico, alertando a parteira da sua falta de tato, na manipulação com recém-nascidos – Isso ai não é o pé do bebê, Dona parteira?
- Logo vi que estava muito mole para ser o pé do pobrezinho – Comentou a parteira demonstrando constrangimento, enquanto me resgatava das garras da cegonha, livrando-me da eminente ameaça de cair e rachar o cabeção.
Finalmente, fui entregue, mais uma vez, a minha mãe.
– Dona Nina – disse a parteira com firmeza – esse é o seu bebê, oxente! Pois não fui eu mesma, quem fez o parto?
- Mas então, por que a cegonha voltou?
A cegonha que permanecia amofinada no canto do batente da janela, tentou esclarecer o qüiproquó:
- Dona Nina, eu voltei para lhe pedir desculpas, ou melhor, para consolar a senhora...enfim, acho melhor eu partir antes que a coisa fica mais preta. Adeus.
A cegonha partiu e a parteira deitou-me na cama, abrindo as minhas perninhas e conferindo se havia feito algum estrago irremediável.
- Sabe Dona Nina – disse ela com olhos de quem está ponderando - acho que ele será um homem bem interessante. Quem sabe até bonitinho, também!
- Queira Deus – sussurrou a minha mãe.
- Pra Deus tudo é possível, não é mesmo Dona Nina?
Eu cresci, não tinha outro jeito mesmo, mas enquanto engatinhava, ninguém me resgatava do chão frio para o aconchego de um colo, por causa da minha feiúra. Pra não congelar a bunda, tive que aprender a andar prematuramente.
Josué G. de Araújo